Saneamento e Saúde Pública
Como Reduzir o Risco de Novos Surtos de Virose no Litoral Brasileiro?
O verão é a época mais propícia para os surtos de virose no litoral em função da aglomeração de pessoas e da maior frequência de chuvas em muitas localidades. No Brasil, o caso mais notório da temporada 2024/2025 foi o litoral de São Paulo, em que milhares de pessoas foram acometidas por infecções gastrointestinais, denominadas, conjuntamente, como “viroses”. Porém, ocorrências similares foram observados também em outros lugares, como no litoral do Paraná e de Santa Catarina.
A Baixada Santista, em São Paulo, registrou casos de virose ainda em dezembro de 2024, mas o número de infecções cresceu muito com as festividades da virada do ano. Até metade de janeiro de 2025, mais de 11 mil veranistas que estiveram em praias paulistas apresentaram sintomas de gastroenterite, como diarreia, náuseas, mal-estar e vômito. Já no litoral do Paraná, mais de 2 mil casos de doenças diarreicas agudas, incluindo as viroses, haviam sido reportados nos nove primeiros dias de janeiro. Esse número é o triplo do registrado no mesmo período do ano passado.
Os surtos do litoral paulista foram atribuídos ao norovírus, cuja presença em amostras de fezes humanas coletadas na região foi confirmada pela Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo. O norovírus, assim como outros agentes associados a viroses (rotavírus, astrovírus e adenovírus) é muito contagioso e é transmitido por via oral-fecal, isto é, a partir da ingestão de água ou alimentos contaminados com fezes de pessoas infectadas. A transmissão também pode ocorrer a partir do contato com os doentes ou com superfícies contaminadas, por isso a maior facilidade de se espalhar em locais com aglomerações, como as praias.
Além dos vírus, outros agentes infecciosos, como bactérias, protozoários e parasitas, são causadores das doenças de veiculação hídrica, que são aquelas transmitidas quando se ingere ou se entra em contato com água que contenha esses organismos patogênicos. Exemplos de doenças de veiculação hídrica incluem a amebíase, a leptospirose, o cólera, a hepatite A e a esquistossomose.
De acordo com dados do Painel Saneamento Brasil, em 2022, mais de 190 mil pessoas foram internadas e mais de 2300 morreram devido a doenças de veiculação hídrica. Em situações de surto, o sistema de saúde sofre impactos por causa do aumento repentino da demanda por atendimento médico. Essas doenças também podem interferir na produtividade do trabalho e no desempenho escolar, visto que os doentes precisam, muitas vezes, se afastar de suas atividades rotineiras. Segundo estudo do Instituto Trata Brasil, com base na Pesquisa Nacional de Saúde de 2019, estima-se que mais de 43 milhões de afastamentos foram motivados por doenças de veiculação hídrica no país naquele ano, com média de 4,6 dias de ausência das atividades de trabalho ou estudo por paciente.
Mas, voltando ao litoral brasileiro, como as doenças de veiculação hídrica se relacionam ao saneamento, que inclui os serviços de drenagem, abastecimento de água e coleta do esgoto?
Qual a relação entre saneamento e os surtos de virose no litoral brasileiro?
Os surtos de virose no litoral brasileiro podem ter sido provocados pela contaminação da água de rios e do mar com esgoto não tratado. A Prefeitura do Guarujá (SP), por exemplo, detectou o escoamento de esgoto clandestino em uma das praias da cidade, que contabilizou diversos casos de gastroenterite.
O litoral recebe muitos visitantes durante os meses mais quentes. Para se ter ideia, a população de Florianópolis (SC), onde foi observado aumento expressivo dos casos de virose no início deste ano, é de pouco mais de 570 mil habitantes fora da temporada de verão. Em contrapartida, a prefeitura espera receber e abrigar temporariamente mais de 2 milhões de visitantes até março, triplicando o número de pessoas presentes na ilha.
Com mais pessoas, os sistemas de saneamento são colocados à prova devido ao aumento no consumo de água e no volume de esgoto produzido. Se a quantidade de esgoto gerado exceder a capacidade de tratamento, a infraestrutura pode sofrer sobrecargas, e o esgoto não tratado pode chegar ao ambiente, causando a degradação da qualidade da água de rios e mares e tornando as praias impróprias para banho. O contato com o esgoto bruto, mesmo que diluído na água da chuva ou do mar, pode causar doenças.
Durante a alta temporada, as praias podem ficar cheias. Com mais pessoas, a demanda por água aumenta, assim como o volume de esgoto produzido, o que pode sobrecarregar a rede de coleta. IMAGEM: Will Langenberg/Unsplash
Além disso, em muitas cidades litorâneas, o verão é marcado por chuvas volumosas, que podem provocar alagamentos e resultar no extravasamento do esgoto para cursos d’água como córregos e rios. Como o esgoto é composto, entre outros, por fezes humanas, pode conter também agentes causadores de doenças de veiculação hídrica, como vírus e bactérias, que são expelidos do corpo dos infectados. A chuva também pode efetuar a “lavagem” das ruas e terrenos e carregar lixo e fezes de animais para as praias.
Os vazamentos e as ligações clandestinas, que podem ser mais comuns em regiões onde há baixa cobertura da rede de esgoto, também fazem parte do problema. O despejo irregular do esgoto, seja nas galerias exclusivas para a água da chuva ou diretamente em rios, córregos ou outros corpos hídricos, pode levar a contaminação até o mar, colocando os banhistas em risco. Também pode contaminar fontes de água, como poços e reservatórios.
A contaminação das águas com esgoto não é um desafio apenas para o litoral brasileiro. De acordo com o “Esgotômetro” do Instituto Trata Brasil, todos os dias são lançados na natureza o equivalente a mais de 5 mil piscinas olímpicas de esgoto não tratado.
Esse cenário poderá ser agravado no contexto das mudanças climáticas e da intensificação dos eventos extremos, como tempestades e ondas de calor. Segundo estudo da WayCarbon em parceria com o Instituto Trata Brasil, esses fenômenos podem resultar na sobrecarga dos sistemas de tratamento de água e esgoto, comprometendo a sua eficiência.
Além de evitar o adoecimento de turistas e moradores locais, a melhoria da infraestrutura e a ampliação da cobertura dos serviços de saneamento podem trazer benefícios econômicos para o litoral, principalmente relacionados às atividades turísticas. Segundo estudo do Instituto Trata Brasil, a universalização do saneamento poderia trazer ganhos de até 80 bilhões de reais para o turismo até 2040. Considerando que o país dispõe de um vasto patrimônio natural e que o Turismo de Sol e Praia é o favorito dos viajantes no Brasil, o amplo acesso ao saneamento poderia estimular ainda mais o crescimento econômico das regiões litorâneas.
Como o saneamento pode contribuir para reduzir os riscos de novos surtos de virose e outras doenças de veiculação hídrica?
Surtos como os registrados neste ano não são novidade. No início de 2023, por exemplo, o norovírus, o mesmo agente identificado no litoral paulista, provocou um surto de diarreia em Florianópolis, com mais de 5 mil casos. Em janeiro de 2022, em Guaratuba, no litoral paranaense, cerca de mil pessoas manifestaram sintomas de gastroenterite em apenas uma semana. Já no Rio Grande do Sul, em 2021, o norovírus se espalhou por várias cidades do estado.
Além disso, casos de doenças de veiculação hídrica não são restritos apenas ao litoral. Por exemplo, surtos de diarreia aguda atribuídos ao rotavírus e ao norovírus foram reportados em mais de 180 cidades goianas em 2024, totalizando mais de 57 mil casos só no mês de agosto.
Diante disso, como reduzir os riscos de novos surtos de viroses e outras doenças transmitidas pela água contaminada? Confira algumas alternativas a seguir.
• Ampliação do acesso a serviços de saneamento
No Brasil, o Novo Marco Legal do Saneamento (Lei nº 14.026/2020) estabelece metas para a universalização dos serviços. Até o final de 2033, 99% da população brasileira deverá ter acesso à água potável, enquanto 90% deverá contar com coleta e tratamento de esgoto. Em 2022, pouco mais de 84% da população tinha acesso à água tratada, ao passo que cerca de 56% dispunha de coleta de esgoto, segundo o Painel Saneamento Brasil. Apesar dos avanços, o país ainda precisa acelerar para o cumprimento desses objetivos. Um estudo do Instituto Trata Brasil indica que, partindo dos índices atuais e com a manutenção do ritmo observado até agora, as metas só serão atingidas em 2070.
Tanto para o litoral como para outras regiões do país, ampliar o acesso aos serviços de saneamento pode trazer benefícios para a saúde pública, ajudando a diminuir a ocorrência das doenças de veiculação hídrica. Também pode acarretar ganhos econômicos, como destacamos anteriormente para o turismo, particularmente para a modalidade de Sol e Praia.
O saneamento também impulsiona o desenvolvimento socioeconômico, com potencial impacto na renda da população. Dados do Painel Saneamento Brasil para 2022 indicam, por exemplo, que a renda média das pessoas sem saneamento era 1,6 vezes menor que daquelas vivendo em localidades com acesso a serviços de drenagem, abastecimento de água e coleta e tratamento de esgoto e resíduos sólidos.
• Melhoria da infraestrutura de drenagem e tratamento de água e esgoto
O investimento em tecnologias e infraestrutura de saneamento, como plantas de tratamento de esgoto eficientes e sistemas de coleta e distribuição mais seguros, pode contribuir para que a contaminação das águas seja evitada, o que resultaria, por conseguinte, na prevenção das doenças de veiculação hídrica.
Também é importante ampliar o investimento em sistemas de drenagem para evitar o acúmulo de água da chuva em áreas urbanas e impedir o escoamento de águas contaminadas para rios e mares.
Essas medidas são ainda mais necessárias diante da aceleração das mudanças climáticas e da intensificação dos eventos extremos, garantindo que os serviços de saneamento possam operar de forma eficaz mesmo sob condições adversas.
• Educação e conscientização pública
Programas educativos sobre práticas de higiene pessoal e a importância do saneamento, como os promovidos por várias instituições e veículos de comunicação durante os episódios de virose no litoral, podem ajudar para que a população compreenda como prevenir doenças e colaborar na preservação ambiental.
• Monitoramento e controle da qualidade da água
É importante desenvolver e disponibilizar sistemas de monitoramento da qualidade da água para detectar e mitigar riscos de espalhamento de doenças de veiculação hídrica. Nesse sentido, o Paraná, por exemplo, oferece um aplicativo gratuito com as informações sobre o estado das praias e rios, além de explicações sobre como se dá a contaminação das águas por esgoto e lixo. Outras localidades provêm as informações para a população por meio de plataformas virtuais e emissão de boletins.
Alguns estados, como o Paraná, disponibilizam informações sobre a qualidade da água das praias e rios por meio de aplicativos. IMAGEM: captura de tela do aplicativo “Balneabilidade Paraná”, do Instituto Água e Terra.
A ampliação do acesso ao saneamento é indispensável para reduzir os surtos de viroses e outras doenças de veiculação hídrica que afetam tanto a saúde pública quanto a economia. Investimentos em infraestrutura de água e esgoto, associados a estratégias de educação e conscientização pública, podem ajudar a aumentar a qualidade de vida da população, além de estimular o desenvolvimento socioeconômico. Mesmo com os desafios impostos pelas mudanças climáticas, a universalização dos serviços de saneamento é um caminho para que as cidades, inclusive as litorâneas, se tornem mais saudáveis para todos.
Para mais conteúdo relacionado às mudanças climáticas, acesse o Painel de Indicadores de Mudanças Climáticas de Curitiba neste link.
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Fontes consultadas
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